segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Me pegaram na Lei Seca

_ Parou de fumar, hein?!
_ Pois é... Tá aí só no cafezinho, tia?
_ Café nada, gato; vinho. Deixei a menina na escola e vim aqui tomar um vinhozinho, vai?
_ Vou não, tô ind...
_ Nem pode, tem o pessoal da Lei Seca.
_ Lei Seca?
_ Ééé, se os caras te pegam rodando por aí doidão, apreendem sua cadeira! Rááá Rá Rá Rááá!


Nunca tive tanto amigo em boteco (e olha que eu já frequentei muitos). O bar aqui do lado de casa está sempre aberto. Sempre. E a hora que for vai ter alguém biritando. Conheço todo mundo por lá, só de passar pela frente. Tem a Bruxa do Mar, o Coroa da Bengala, o Botafoguense Maluco, só figura. Pode estar chovendo, ventando, não interessa: os caras metem um gorrinho na cabeça e vão marcar ponto no botequim.  E a piada da vez é o papo da Lei Seca. Não sei quem inventou, mas está fazendo o maior sucesso. Na última semana ouvi um monte de vezes. Todo mundo acha que está sendo original.  Antes de ir pro trabalho, parava lá pra comprar um maço de cigarro. Também ia pra assistir a tudo que é jogo do Mengão tomando uma cerveja. Hoje, circulando por aí, acabo interagindo com a rapaziada do pé sujo várias vezes ao dia. E bêbado é maneiro: solidário, simpático, prestativo, engraçado.


_ Ô da cadeira, vê se não bebe muito hoje não, tá?
_ Já sei, já sei, por causa da Lei Seca.
_ Rááá Rá Rá Rááá...

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Pelo Olho de Thundera

Domingo a gente tentou ir ao teatro. A Gloria comprou os ingressos com antecedência, eu liguei pra bilheteria explicando que sou cadeirante e tal, me deram uma senha de garantia, chegamos meia hora antes do sinal, mas mesmo assim não deu pra ver a peça. Os lugares reservados (?) eram num fosso sem a menor condição de entrar com a cadeira. A responsável de lá era uma tal de Kátia, que mais parecia o Mun Rá antes da transformação (os mais novos podem procurar no You Tube em Thundercats). Primeiro disseram que eu não informei minha condição de deficiente quando liguei (telefonei pra que então?), depois que chegaria um cadeirante-fantasma pra ocupar um único lugar razoável que havia disponível, aí vieram as famosas frases que pintam quando os despreparados não sabem o que fazer: "Ele não anda nem um pouquinho?", "O senhor pode ficar despreocupado que a gente desce o senhor lá pro buraco", "Vocês esperem o espetáculo começar que aí tá tudo escuro mesmo e não tem essa de lugar marcado...", "Fica tranquila que a gente vai arrumar um cantinho pra colocar ele". Aí Mun Rá deu mole porque foi falar isso logo pra Glorinha. A Chefe até que estava resistindo bem ao festival de constrangimentos a que estávamos sendo submetidos, mas essa de "a gente coloca ele num cantinho" foi demais pra ela. A vilã de desenho animado foi lembrada gentilmente de que eu estava ali na frente dela (chato mesmo esse lance de falarem de mim como se eu não estivesse ali), de que mesinha de centro é que a gente arrasta pro cantinho e de mais um ou outro fato que ilustrava o absurdo da situação. Como não havia mais clima pra assistir a peça nenhuma, pegamos o dinheiro de volta e fomos embora antes que chegasse o Escamoso, o Abutre ou o Simiano pra completar a quadrilha e dar uma força pra Kátia. Engraçado é que antes da lesão eu podia jurar que teatro era um lugar tranquilo pra quem tem dificuldade de locomoção. Afinal é o tipo de evento que, além de caro, recebe bastantes idosos. A gente já conferiu doze salas diferentes até agora e a única que reúne condições próximas do ideal é a do Teatro Fashion Mall. Isso não quer dizer que a gente não vá aos lugares; na maioria tem como dar um jeito. Tudo depende de como as pessoas te tratam: de boa vontade, bom senso e bom humor. Agora, voltar ao Shopping Barra Square (onde fica o citado teatro) só se for de Espada Justiceira em punho. O lugar tem pinta de galeria antiga: elevador que não cabe cadeira de rodas, vagas especiais ocupadas por qualquer um ("Corre lá porque cê sabe como é que é, né? Nego num respeita.") e Praça de Alimentação com restaurantes com degraus na entrada. Talvez por isso estava às moscas no último fim de semana antes do Natal.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Ôôôô, ôôôô, ôôô Rock in Rioo

Quase não fui ao Rock in Rio. Devo confessar que bateu preguiça - e você vai entender o porquê. As orientações sobre o acesso (pelo menos pras pessoas com deficiência) não eram lá muito animadoras.
Agora vou descrever as opções de chegada e saída para o evento. Se você, camarada, estiver sem saco de ler tudo, ok, eu vou entender. Faz o seguinte, pula direto pro final que lá eu conto alguma coisa dos shows e tal.


De carro não ia ter como chegar perto da entrada. Se tivesse, seria pra desembarcar um coitado e depois vazar dali atrás de uma vaga. E se o motorista fosse um cadeirante conduzindo seu próprio automóvel até o festival? E se o deficiente em questão não tivesse condições de ficar esperando sozinho seu acompanhante voltar depois de estacionar o carro sabe-se lá onde? Enfim, tinha, sim, como estacionar no Riocentro - que fica em frente - ou ainda em um dos vários estacionamentos que surgiram na Estrada dos Bandeirantes (dez a vinte pratas o período).

Nos ônibus regulares, o perrengue de sempre (não tem santo que ensine os caras a manusear um elevadorzinho de nada), com os agravantes que vêm a reboque em um megaevento: mais engarrafamento, mais calor, mais confusão. O cabra chegava ao terminal Alvorada, pegava uma condução específica e depois trocava por uma van especial (da própria organização, que levaria somente pessoas com mobilidade reduzida) até a entrada. Tinham também as tais Linhas de Primeira Classe, que faziam o trajeto até a Cidade do Rock. Era só desembolsar R$ 35,00 (mais cinco contos se quisesse receber o bilhete em casa) e avisar pelo site o local e horário que pretendia usar a condução - era pra providenciar cadeiras de transbordo (?) pros cadeirantes poderem embarcar. Tinha como dar certo isso? Pois é, não deu. Não rolou esse papo de van, muito menos de marcar horário pela internet.

Teve gente que preferiu tentar os táxis. Primeiro que estava meio difícil encontrar taxista disponível (fosse na ida, fosse na volta). Depois que, talvez devido às dificuldades, o preço das corridas deu uma inflacionada. Só pra ilustrar, vai o exemplo da cooperativa que deveria facilitar a vida do cadeirante, única na cidade com carros adaptados. Eles fizeram uma espécie de tabela por regiões. Ida e volta daqui de casa até o evento saía por TREZENTOS PAUS! Não vou nem comentar.


Aqui acho que já dá pra voltar a ler.

A gente deu sorte; foi de carro, tranquilo. Pelo Recreio não tinha congestionamento. Deu pra parar o carango numa marmoraria que virou garagem ali pertinho de tudo. Dica da sempre sagaz Vanessa. Pra entrar foi molezinha, tinha uma passagem com rampa. Circular lá dentro também era fácil; o espaço era gigantesco, não havia degraus e, como piso, eles usaram parte grama sintética, parte pedra lisa, que formava caminhos facilitando a referência. Era sábado (01/10) e deu pra ouvir um som bacana - Arnaldo Antunes e Erasmo Carlos, Frejat, Maroon 5, Coldplay. Na hora do Manah, tiramos pra dar um rolé. Estava cheio, mas a equipe balizadora (Glorinha e Mariana) funcionou perfeitamente. Aí, Mari, domingo tem Fla-Flu no Engenhão, beleza? Tinha uma área (muito boa) reservada pra cadeirantes. E não tivemos dificuldades pra comprar comida, não teve tumulto nem nada. O banheiro é que foi o ponto negativo da coisa. O masculino, porque Gloria disse que o das senhoras estava padrão. Não tenho palavras pra descrever o que era aquele (único) banheiro (químico) pra cadeirantes (usado por todo mundo, sem restrição). Aliás, até tenho (palavras), mas vou quebrar o galho de vocês; cada um que use a sua imaginação mais fedida. Resumo do pagode: teve som pra todos os gostos; o ambiente era aquele de festival de música, todo mundo a fim de curtir e não de arrumar confusão (não vi um só bate-boca); o pessoal da produção não sabia informar nada direito, desde a história dos acessos até a área reservada (ninguém conhecia, não fosse uma moça simpática e prestativa, estaríamos procurando até agora); se os caras fizeram banheiro de alvenaria, não tinha como reservar um que coubesse uma cadeira de rodas? Um ÚNICO banheiro químico e liberado pra milhares de pessoas? Não dava pra colocar alguns na área própria pra pessoas com dificuldade de locomoção? Descaso total, não dá pra aliviar. Mas valeu a pena a experiência, ia me arrepender se não tivesse ido. Só da próxima vez vou ver se uso o serviço de helicópteros, que saíam do Galeão, Santos Dumont ou Lagoa e levavam dez minutos pra chegar lá. Custava somente nove mil reais por cabeça. Acho melhor começar logo a juntar dinheiro porque em 2013 tem mais, não é Sr. Roberto?

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

No colo do Robocop


O diálogo a seguir deu-se na estação do metrô Nova América/ Del Castilho. Ocorreu precisamente entre o primeiro e o último degrau da escada de acesso à plataforma de embarque sentido zona sul. Sem elevador ou escada rolante disponíveis no local, o meio utilizado para o deslocamento de cadeirantes é o Super-Trac TRE-52, o que o fabricante - Access Plus Elevadores - diz ser uma plataforma portátil para cadeiras de rodas. O popular Robocop é uma geringonça (misto de esteira, rampa e tripé móvel) que faz todo mundo suar frio toda vez que é utilizada. A gente estava descendo: o funcionário De Souza, o Robocop e eu.
            _ Você mexe as pernas, né?
            _ Não, amigo, eu não mexo não.
            _ Mas eu vi você mexendo agora.
            _ Cara, deve ter sido impressão sua porq...
            _ Vi sim, mexeu sim!
            _ Meu camarada, se foi assim mesmo eu vou dar uma festa hoje que só vai acabar segunda-feira; uma rave.
            _ Ãh, sei... Mas foi o que isso aí, acidente?
            _ Não. A minha medula está inflamada.
            _ Mas você tá por dentro desses rolo lá no congresso lá?
            _ ...
            _ Esse lance de célula tronco. Mas não vai dar certo não. Esses cara é tudo safado, só quer saber de dinheiro. Hoje em dia é tudo dinheiro. Queria ver se fosse com a mãe deles.
            _ Sei...
            _ Tive uma prima que morreu de AIDS. Vinte e quatro anos. Mas ela não guentô não. Depressão, sabe? Enfiou a cabeça na torneira de água fria, teve tuberculose, ficou cega, perdeu cabelo.
            _ Er... Nova ela, né?
            _ Aqui tem o Adriano.
            _ Adriano?
            _ Aquele. Funcionário com a gente aqui. – ele estava se referindo a um rapaz, cadeirante mal humorado, que trabalha na estação também.
            _ Er... Novo ele, né?
            _ Ele teve um negócio aí congênito. Ele e o irmão. O irmão tá pior que ele. Brigava com geral nos baile. – nessa hora ele parou e deu uma gingadinha; como quem está brigando, entende? – E cego? Cego é pior, né não? Entre o seu problema e ficar cego, eu sou mais o seu. Você só não pode andar, agora cego... Cego não enxerga. É por isso que eu não brigo com ninguém, trato todo mundo bem, certo?
Nisso o trem chegou. O cara me ajudou a entrar e ficou parado na estação; acenando e sorrindo pra mim atééé a composição se afastar.
Tem gente que faz amizade fácil, não?

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A piranha bêbada e o touro de chifre miúdo - uma fábula etílica no país do carnaval


O Bloco das Piranhas abria oficialmente o carnaval de Friburgo. Um monte de marmanjo vestido de mulher, coisa mais ridícula. Eu, garoto, achava aquilo tudo o máximo; participava do evento pela primeira vez. Até onde me lembro estava na concentração atracado a uma garrafa de vinho barato. Antes mesmo do desfile começar eu já tinha desmaiado no meio da rua. Meu primeiro coma alcoolico. O enjoo só foi passar na quarta-feira de cinzas, mas valeu a pena, foi tudo bem divertido. Em outra ocasião ia mijando na minha mãe. Cheguei em casa de porre, achei que o quarto dela era o banheiro e estava pronto pra abrir os trabalhos. Ainda bem que a coroa teve presença de espírito; segurou o touro pelo chifre e evitou o pior. Hoje em dia ela até já fala comigo. Teve também a vez que roubei a Brasília do meu pai e quase fui parar dentro de um mangue. Já taquei fogo na camisa (duas vezes), vomitei de tudo que é jeito (em tudo que é lugar, de tudo que é cor), já acordei sem saber onde (nem como, nem por quê), enfim, já dei vexame pra cacete. Mas isso foi nos tempos de moleque. Até calibrar a serpentina, digo, aprender a beber leva tempo. Minha relação com a bebida foi melhorando com a idade. Dá pra dizer que me tornei um bom bebedor. Se a gente reunir agora um grupo de amigos bons de copo, provavelmente vou ser um dos últimos a cair. Houve tempo em que sentia certo orgulho disso. Acontece que algo mudou depois da lesão. Acabei parando com esse lance de beber. Não que eu tenha sido proibido ou coisa assim. Pelo contrário; os médicos autorizam (e muitas vezes até aconselham) tomar um gelo de vez em quando, sem problemas. Eu é que não ando muito a fim mesmo. Talvez seja porque queira me manter o mais sóbrio possível já que estou pilotando uma cadeira. Gosto de tocar a bike sozinho, entende? Ainda têm as transferências (cadeira-carro, carro-cadeira, cadeira-sofá, sofá-cadeira, cadeira-cama). Um estabaco nessas situações é mais que possível, é provável, quase certo. Pode ser também por causa da tal bexiga neurogênica. Explico: eu não tenho sensibilidade pra saber quando o tanque está cheio, sacou? Aí tudo passa a ser uma questão de lógica matemática: se você bebe muito, então vaza muito. E digo vaza porque o troço transborda mesmo; não dá pra controlar, nem pra perceber. De repente você olha pra baixo e tem uma poça enorme onde deveria estar seco. É isso ou desfilar por aí de fraldão geriátrico. Tem gente que não liga, mas eu passo; tô fora. Mas não deixei de encontrar a rapaziada pra tomar um chope. Até porque a expressão pra mim sempre teve mais a ver com evento social que com a birita em si. Sem contar que é muito engraçado acompanhar a transformação. Aos poucos todo mundo vai ficando doidão e eu ali, sóbrio que nem uma freira. Aí é só chantagear todo mundo no melhor estilo “eu sei o que vocês fizeram na noite passada”. Os caras põem na conta da amnésia alcoolica e eu desse jeito ainda vou acabar ficando rico.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Na minha cadeira ou na tua?

Devia ter ido ao barbeiro hoje à tarde. Ainda não cortei o cabelo desde que voltei dessa última internação. Nem fiz a barba. Se juntar a isso dois ou três hematomas nos braços, cortesia de técnicos de enfermagem sem coração, posso fazer tranquilo figuração em filme de bandido. Sabe o cadeirante-viciado-largado-na-cracolândia? Então. Acontece que a rapaziada da tesoura só vai me ver amanhã. É que eu engrenei na leitura de “Na minha cadeira ou na tua?”, da Juliana Carvalho, e só parei quando acabou. Sabia que o livro era bom. Divertido, interessante, informativo, emocionante. Recomendo pra todo mundo. Já tinha comprado faz um tempo, mas por algum motivo ainda não tinha lido. Acho que não estava muito a fim de esbarrar com um monte de coisas que sabia que ia encontrar ali dentro. Eu conheço aquelas histórias; reconheço aquelas pessoas. Tudo muito familiar. Mas quer saber? Me fez bem pra cacete. Recarregou as baterias agora que entro em nova fase do tratamento. Renovou a disposição de procurar por coisas novas. Amanhã vou chegar com outra postura no Hospital da Lagoa. Putz! Lembrei que tem consulta logo de manhã. Tomara que tenha um barbeiro lá por perto...

sábado, 30 de julho de 2011

Inveja do Galinho

Deu na televisão que o Camisa Dez andou internado. Arthur Antunes Coimbra, o grande ídolo do Mengão, passou mal e foi internado num hospital particular da zona oeste do Rio de Janeiro. Soube pela TV, mas esteve na internet, no rádio, jornais. Vi ainda que ele postou mensagem no Twitter pra seus seguidores. O craque disse assim: "Estou no quarto nesse momento. Os exames saíram e estou bem. Queria agradecer a todos aqui pela preocupação. Amanhã devo estar em casa". Admito que bateu inveja. Tudo bem que não sou famoso nem nada, meu perfil no microblog não deve ter nem dez interessados, que a imprensa não ia perder tempo com a minha pessoa, mas que bateu inveja bateu. Foi aí eu resolvi me manifestar também. Pensei em dar uma de moderninho e ir postando meus momentos internado no hospital, diretamente do quarto 622.  Ia ser a diversão de meus amigos virtuais, massivamente informados das rotinas hospitalares. Ensaiei postagens relacionadas ao banho, acessos venosos (perdidos e recolocados), medicamentos etc etc. Acabei desistindo. Lance mais deprimente esse de ficar escrevendo em leito hospitalar. Acho que não tenho vocação pra celebridade mesmo. Ao invés disso rola um post estilo jogador de futebol: "Já tive alta e estou em casa neste momento. Os exames saíram e nada acusaram. Queria agradecer a todos aqui pela preocupação". Valeu, valeu, eu sei que ficou meio sem graça. Mas hoje em dia estou preferindo bancar o Zico a dar uma de Amy Winehouse.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Inacessível

Eu sei, eu sei, eu ando (rodo) meio sumido. Mas as justificativas são muitas, e todas plausíveis. Até porque, como dizia Gandhi, “se você puder culpar alguém por alguma coisa, faça exatamente isso”. Pra começar têm as calçadas. Talvez na intenção de solucionar o problema dos bueiros-bomba, agora está cheio de tapume espalhado pelas ruas. Em alguns casos eles até deixam espaço pra pedestres, mas pra cadeirantes... Outro dia tive que ir ao barbeiro. Já estava parecendo um lobisomem da meia noite e a Glorinha estava a ponto de me botar pra dormir na cadeira. Quase dei a volta no quarteirão pra entrar na galeria que é logo aqui do lado. Aliás, a outra calçada também estava interditada. Atravessei a rua pra tentar a sorte e aí fiquei pensando: e se ali também estivesse em obras, fazia o que? Não estava, deu tudo certo. Teve também que andou chovendo semana passada e cadeirante é igual a PM, quando chove some tudo. A internet aqui em casa está uma bela bosta. Não consigo acessar de jeito nenhum. Os caras da academia devem achar que eu sou maluco. Enchi o saco de meio mundo pra aceitarem minha matrícula e, quando consigo, desapareço.  É que o meu ombro ainda está meia bomba. Mas nem tudo são misérias na minha vida. Comecei um curso muito bacana no Midrash Centro Cultural, por sinal um lugar totalmente acessível. Uma oficina de literatura com o Arnaldo Bloch, o que acaba tomando um pouco do meu tempo. Então é isso, escolham a desculpa, digo, justificativa que mais lhes aprouver e perdoem meu sumiço temporário. Prometo; compensá-los-ei (?) em breve com as histórias que for ouvindo por aí nesse período.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Sem luz eu tô lascado

Mais um bueiro estoura no Rio de Janeiro. Mais um tampão de ferro voa pelos ares. E dessa vez foi aqui pertinho. Na minha rua. Logo ali na esquina. Podia muito bem estar passando por lá. Quem sabe indo pra academia... É, academia. Consegui uma que me aceitasse. Não reparou que eu estou mais forte? Acontece que eu ando com o ombro meio detonado e essa semana tirei pra ficar de molho. Então estava em casa na hora que começou a sair fogo do chão. A explosão causou um blecaute. O bairro todo sem energia. Foi aí que me dei conta de um lance: "sem luz eu tô lascado". Acompanha só. Sem luz (iluminação, ok?), sem internet, sem televisão, sem telefone (sabe esses aparelhos sem fio? pois é), sem interfone, sem microondas, sem elevador (terceiro andar, parceiro). No meu apartamento eu não consigo chegar na janela; tem um ressalto assassino que me impede o acesso. Mas deu pra ouvir que estava tudo engarrafado por aí. Percebi que ia demorar quando ouvi a sirene dos bombeiros. Pensei em comer alguma coisa, mas não tinha como esquentar nada e na cozinha eu não sei fazer nem água quente. Desisti de acender uma vela porque eu sou meio desastrado e isso não ia dar certo. O serviço de informações da portaria também não estava disponível. Foi aí que senti cheiro de fumaça. Tentei chegar no corredor, mas já não dava pra enxergar mais nada. Os vizinhos do meu andar já tinham se mandado. Fiquei em pânico. O desespero era... Brincadeira. A parte do incêndio é brincadeira. Só não custa nada manter a bateria do celular sempre carregada porque qualquer dia desses pode pintar um apagão e vai que...

terça-feira, 28 de junho de 2011

Cadeirantes do mundo, uni-vos!

Abriu um bar novo aqui perto de casa. Não vou frequentar porque logo na entrada tem um degrau de quase dois palmos de altura. Desaforo. Os caras ficaram aporrinhando a vizinhança com uma obra que durou séculos. Várias vezes tive que mudar de calçada porque estava cheia de pedra ou de areia ou de saco de cimento... Não deu pra botar uma rampa? Aí volta aquele papo de que acessibilidade é coisa séria e tudo mais. Conversa. Está cheio de aberração por aí. Outro dia eu e Gloria fomos ao Porcão Rio's. Tem uma passagem sem escada pelos fundos. E sabe por onde é o acesso? Pela cozinha. Uma cadeirante conhecida minha mora num prédio ali na esquina há dezoito anos. Ela entra em casa pela garagem, numa portinha colada à lixeira. O Itaú da Marquês de Abrantes tem um verdadeiro gelo baiano justamente na entrada destinada a cadeirantes. E eu estou falando de zona sul, região valorizada da cidade, de restaurante conceituado. Pode parecer que a gente não circula por aí, que cadeirante fica entocado em casa. Mas o papo não é bem esse não. Fui resolver uns assuntos de rua essa semana, coisa de uma horinha só. Cruzei com nada menos que cinco cadeirantes, duas pessoas com andador, três de muletas e duas de bengalas. E não, eu ainda não estou morando num asilo. Ficaram de fora do levantamento quem estava usando uma daquelas botas ortopédicas, as mães e seus carrinhos de bebê e os idosos com seus acompanhantes. Está cheio de gente com mobilidade reduzida por aí. Os investimentos em adaptação estão longe de ser dinheiro jogado fora. Falta visão aos donos de estabelecimentos comerciais. Essa rapaziada com dificuldade de locomoção é mercado consumidor também. Ou não é? Acredito que seja parcela importante do público que come, que bebe, que mora, que compra, que gasta. Dito isso convoco todo mundo pra assembleia de fundação de um grupo de protesto. O nome de repente pode ser FUPA (Frente Unida Pela Acessibilidade) ou MRA (Movimento Revolucionário Acessível). Vamos fazer barulho pra todo mundo ouvir, que nem os bombeiros. Só não vai dar pra ser na ALERJ, porque lá tem uma escadaria e tal...

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Deu no RJTV

Agora está na moda aqui no Rio esse lance de explodir bueiro, não é? Parece que, desde 2007, já foram dez pro espaço. O próprio presidente da Light já admitiu que existem outros 130 pontos críticos espalhados pela cidade, principalmente em Copacabana e no Centro. Pode chamar de neurótico, mas entrei numa de desviar de tudo que é tampão de ferro que eu encontro pela frente. Acontece que tem uma quantidade absurda dessas placas espalhadas aí pelo chão. Nunca tinha reparado. É um tal de CEG, GVT, NET, CEDAE... Serão todos potenciais bueiros-bomba ou esses atentados são exclusividade da companhia de energia elétrica? Resolvi contar quantas tampas de metal tem do metrô até aqui em casa, meio quarteirão. Exatamente 240. Faço uma ideia da zona que devem ser essas galerias subterrâneas. O primeiro estudo a esse respeito foi encomendado pela prefeitura e só fica pronto em 2012. A gente já tem que ficar esperto com um monte de obstáculo por aí - buraco, pedra portuguesa, degrau. Acrescente-se mais esse item à lista. Eu estou tomando meus cuidados pra não virar estatística por aí de bobeira. Já pensou sair no Meia Hora? "Cadeirante voa pelos ares sem para quedas". Tô fora.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Em caso de emergência, aperte o botão vermelho

Outro dia fui à Praça Onze. Acho esse bairro meio inútil (não é residencial nem comercial nem arborizado nem nada). O lugar me lembra circo - por algum motivo tem sempre um armado por lá. Fui de metrô, como manda o bom senso. Acabei cruzando com um antigo colega de trabalho, que fingiu não me ver (o palhaço devia estar largando o turno lá no Beto Carreiro). Tem uma saída novinha na estação, bem em frente de onde eu precisava ir. Com rampa, guichê rebaixado, piso tátil, informação em braile e... escada. Pra chegar à plataforma, só carregado pelos funcionários. No acesso antigo não é muito diferente não. Você dá a volta no quarteirão (pela calçada mais esburacada que já tive que encarar) e desce pela escada rolante (também com a ajuda de agentes da casa). Ainda não conheço a Cidade Nova, aquela ali no Piranhão, mas dizem que é o padrão a ser seguido, com elevadores e demais instrumentos que possibilitam trânsito livre. Eu gosto do metrô. É um meio de transporte onde as coisas até que funcionam direitinho, os caras são atenciosos. Agora, eu tenho visto cada usuário por aí que eu vou te contar um negócio. Tem os coroinhas que não querem usar a escada rolante, não sabem usar os controles do elevador (as opções são três: sobe, desce e emergência; um doce pra quem adivinhar qual botão eles apertam toda vez), ainda ficam reclamando que nada funciona direito, que está tudo quebrado e tal. Tem as mães-com-criança-pequena que deixam os moleques brincarem no aparelho só pra não ficarem enchendo o saco ("Isabela Maria, sai já daí que o moço quer usar o elevador!"). Na Carioca (e na Saens Peña e na Arco Verde) tem umas plataformas pra mudar de um andar pra outro que de tão lentas dá vontade de levantar e subir andando. O troço vai apitando e acendendo uma sirene irritante igual à dos bombeiros. A velhinha me encarou com olhar desafiador, ajeitou a bengala na mão e começou a subir as escadas, na maior disposição. Não posso afirmar, mas acho que vi o apontador de jogo do bicho organizando a banca de apostas. A vovó, cheia de marra, nem se virou pra me ver sair do equipamento que ainda chacoalhava. Se apoiou na acompanhante e saiu batida. Deixa estar, na próxima eu vou à forra...

terça-feira, 31 de maio de 2011

Pelos direitos dos cachorros pretos cadeirantes

A vizinha aqui do prédio quer entrar pro Conselho Tutelar. Está fazendo campanha nesse trecho entre a guarita e o botequim. Todo dia. Eu não fazia ideia de que o cargo era eletivo, mas parece que é. Acontece que meu título não é daqui; voto na mesma zona eleitoral desde os dezesseis e, quando me mudei, nem transferi nem nada. Caí na besteira de falar isso pra ela. Agora a maluca vive tentando me convencer a mudar o lance pra cá e tal. Sua plataforma de governo até que é interessante - se o Serra fosse amigo dela não tinha perdido as eleições pra Dilma não. Como se sabe "todo mundo tem direito: o cadeirante tem direito, o preto tem direito, o cachorro tem direito". Eu não sei bem o que faz uma conselheira tutelar, só sei que a vida de todo mundo vai ficar muito melhor. O mendigo-que-fala-sozinho que está sempre aqui pela área acredita nela. A rapaziada do Cantinho da Cirrose também. Como já tem muita gente acreditando eu é que não preciso esquentar a minha cabeça. A Kátia já está praticamente eleita. Que bom, porque assim ela vai poder melhorar as calçadas do bairro, reduzir a inflação, negociar a paz no Oriente Médio...

terça-feira, 24 de maio de 2011

Até breve, Ezequiel

Estimado Carlos,
Infelizmente, e com certa vergonha, por nosso estabelecimento ser un tanto familiar, nao contamos com as instalacoes necessarias para recebe-lo.
Esperamos poder recebe-lo em breve.
Cordialmente,
Ezequiel



Eu poderia ficar aqui tentando explicar como pode ser surreal encontrar um hotel que te receba quando se é cadeirante, mas acho que o Ezequiel faz isso bem melhor do que eu. Mandei emails pra todos os hoteis de Angra dos Reis. Todos. Falei ao telefone com uma dúzia de atendentes. E o resultado era sempre esse lance de "não tenho como atender e tal" ou a diária era cara demais (tipo R$ 719,00 + 2% de ISS). Acabei conseguindo uma pousada que tinha "só um pouquinho de escada". Pra chegar na Waterfront você tem duas opções: vai nadando ou encara 24 degraus até a recepção. Acho curioso que, em uma cidade super ligada ao turismo, o setor hoteleiro não faça ideia do que seja acessibilidade. Bicho, não é aqui que vai ter copa do mundo? Olimpíadas (e paraolimpíadas) também. Vão deixar pra se estruturar quando? Aqui no Rio é a mesma coisa; antes de sair pra algum lugar tem que ligar pra saber se tem banheiro, rampa, o escambau. Sem contar as aberrações - rampa com degrau, banheiro adaptado onde não cabe cadeira de rodas. O evento foi show de bola, revi amigos de muitos anos, realmente valeu a pena. Agora, voltar a Angra...

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Uma tarde no Hospital da Lagoa

Cheguei lá por volta das 13:30h. Não estava nem tão cheio, era o quinto na lista de atendimento pra doutora Cláudia.  Às 14:00h ela começou as consultas. Fiquei ali lendo meu livrinho numa boa.  É um entra e sai danado naquele consultório. Deu 15:15h quando saiu o primeiro paciente. Fiquei pensando: acho bom caçar um banheiro porque daqui a pouco está na hora do meu CAT. Banheiro é modo de dizer porque a cadeira não entra na cabine nem por decreto. Abordei cinco enfermeiras até conseguir uma, a Rosário, que se desse o trabalho de descolar uma salinha reservada pra mim. 16:15h e eu estava de volta à área de espera. Perguntei pra minha mãe se tinha saído alguém da sala. Nada. Voltei à minha leitura. Lá pelas tantas a médica transferiu dois de seus pacientes pra serem atendidos por duas assistentes dela. Minha vez chegou quando bateu 19:00h. Claudinha passa por mim e fala: aguarda aqui um instantinho só que eu vou ali ver um negócio. A conversa no corredor levou mais meia hora; eram aqueles representantes de laboratório que têm toda prioridade nesses casos (é preciso tratar bem esse pessoal). Na sala havia oito pessoas: eu, minha mãe, Cacau e cinco alunas, residentes, estagiárias, sei lá o que são essas meninas de jaleco. O papo furado de sempre foi interrompido um monte de vezes por alguém que entrava ("E aí, Clau, você também vai naquele congresso em Buenos Aires? Urruu!"), pelas conversas paralelas ("Aposto que ela já casou grávida.") ou questões ainda mais importantes ("Tô indo na cantina, quem vai querer o que?"). Às 20:20h a enfermeira concluia as instruções para utilização do medicamento totalmente novo pra mim que Claudete não teve a decência de me explicar como funciona ("Ah, vê lá com a Luzia porque é tanto remédio que a gente não tem como guardar tudo, né?"). A próxima consulta está marcada pra 27/07.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Coitado do moleque

Rodar por aí pela rua pode ser bem engraçado às vezes. Tem a vizinha que te acha “muito saidinho” (“num tá independente demais ele não?”). Tem a rapaziada do boteco que faz questão de falar contigo – tudo que é cachaceiro vira teu amigo de infância. Costumo sair pra um rolé pelas redondezas de vez em quando. É bom pra treinar passagem pelos obstáculos naturais urbanos. Minha mãe é companhia frequente. Essa semana o bebum virou pra ela e começou a reclamar (“tem que ajudar o cara, mané, tem que ajudar o cara”). Camarada, poupa a velha. Alivia porque ela está só me acompanhando. Ando com a sensação de que o Rio é que nem cidade do interior: todo mundo se cumprimenta; alguns até param pra conversar, mesmo sem te conhecer. Já ouvi muito deficiente que tem vergonha de sair porque as pessoas ficam olhando. Ficam mesmo, mas pode ser por vários motivos. Pode ser por curiosidade, pode ser por distração, pode ser que te conheça e não lembre de onde, pode ser paquera (por que não? Pode sim), pode ter gostado da tua camisa, pode até ser por pena, mas e daí? Eu, particularmente, não esquento muito minha cabeça com isso não. Acho que quanto mais a gente sair, mais natural vai ser pra todo mundo. Outro dia no metrô tinha um cara que parecia enrolado pra guardar suas coisas na mochila. Solidariedade de cadeirante, perguntei se precisava de ajuda. Tomei um fora. Eu e todo mundo que falou com ele. Aproveito a oportunidade pra esclarecer: Companheiro, eu não estava te seguindo; a estação que é grande e a saída é a mesma pra todos. Falando em gente esquisita teve aquela da mulher, o garoto e o carrinho de brinquedo. Esperando o elevador ela me vem com essa:

_ Ooolha, Juniiinho, o carrinho do moço é igual ao do neném.
_ Igual, igual – repetia Juninho apontando pra minha cadeira de rodas.
_ Éééé... Quando o neném crescer vai ter um igualzinho ao dele.

Tomara que não, Juninho, tomara que não.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

A casinha da luz vermelha

_ Ih, Margarete, lascou!
_ Lascou o que, Sandra de Deus, você tamb... Ih, lascou...
_ Você pode fechar a porta pra mim, por favor?
_ Olha, moço, num pode ficar com a porta aberta assim não, tem a luz vermelha aí fora que quando tá acesa a gente num entra, mas quando tá apagada, aí a gente entra, porque a gente tá trabalhando e num tem como adivinhar que tá ocupado e se eu soubesse eu num entrava, mas como eu num sabia como é que eu ia adivinhar? E tem também que...
_ Então, você pode fechar a porta pra mim, por favor?
_ Tá, mas, da próxima vez, aperta duas vezes esse botão aí de dentro que a porta fecha e tranca e acende a luz vermelha aqui fora e...
_ Aperto sim, aperto sim, podeixar...
_ Acorda, Sandra, fica aí que nem uma estátua, se mexe, guria, aperta esse botão logo de uma vez que o homem quer usar o banheiro, coitado, e aproveita e...
Autocateterismo Vesical Intermitente Limpo. É assim que muitos cadeirantes fazem xixi. E digo muitos porque cada caso é um caso. Dependendo da altura da lesão medular (se é que é esse o caso), tem gente que tem mais ou menos sensibilidade. Simplificando, trata-se da introdução de uma sonda uretral até a bexiga a fim de retirar a urina. A gente faz o CAT umas cinco vezes ao dia. Não dá pra sentir se o tanque está cheio, entende? Então o lance é controlar a ingestão de líquido. O procedimento envolve todo um material: gaze, lubrificante, álcool gel, saco coletor, água boricada. É só levar em um kit portátil e fica tudo certo. Com a prática dá pra fazer em quinze, vinte minutos. Eu estava no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, e já tinha usado o banheiro do andar de desembarque. Amplo, barras de apoio padrão, pia na altura adequada, tudo certinho. O problema foi no retorno pro Rio. Antes do embarque, fui fazer o CAT velho de guerra. Glorinha ficou tomando um café enquanto eu me dirigi ao toilette. A disposição era a seguinte: tinha o masculino, que era ao lado do feminino, que era ao lado do adaptado. Parecia igualzinho ao outro que eu já conhecia. Parecia. Meti a mão na porta e ela estava trancada. Tinha visto um cara limpando o lado masculino e fui lá pedir uma força. Ele soltou um grunhido e saiu andando. Eu atrás. Não tinha reparado, mas havia ali um botão na parede, que ele apertou e a porta se abriu automaticamente. Abriu não, escancarou. Agradeci e entrei feliz. Novo grunhido. A porta fechou sozinha, o que me fez ficar pensando em como era bacana esse sistema e tal. Estava no meio do CAT quando a tal da porta abre de repente.
_ Ih, Margarete, lascou...

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Gramado

Trabalho da Gloria + promoção da TAM = fim de semana em Gramado/RS, mais conhecida como O Mundo Encantado do Coelhinho da Páscoa (parece que o Papai Noel também mora por lá). Gostei da cidade, não conhecia. É quase tudo plano, com calçadas e acessos tranquilos de transpor. A maioria dos estabelecimentos está preparada pra receber o turista cadeirante, tem rampa pra todo lado. Tudo bem que às vezes são meio íngremes, mas a intenção, claríssima, é receber bem todo mundo que chega à região. Sabe o que eles têm por lá? Os chamados Sanitários Públicos. Bem na praça central, um banheirão de uso – gratuito – aberto aos passantes. Está aí uma boa sugestão pra prefeitura daqui do Rio. Simplesmente não existe sinal de trânsito, acredita? Basta o cidadão colocar o pé (no meu caso, a roda) na faixa de pedestres e os carros param automaticamente. Parece Europa. Dá até vontade de ficar, só de sacanagem, indo e voltando pela rua pra testar o sistema – carioca é tudo espírito de porco, né não? Tem um programa num posto de gasolina, o Cidadão Capaz, onde metade dos funcionários são deficientes. Completa acessibilidade para empregados e clientes. Ainda não tinha visto essa iniciativa em outros lugares. Muito bacana. A gente ficou hospedado no Hotel Villa Bella, que possui certificado de Acessibilidade Total para hotelaria do Instituto Pestalozzi. Atendimento padrão, dá pra circular por todas as dependências comuns. Quarto acessível, piscina acessível e transporte acessível – e gratuito – para o centro. Muito legal a viagem, mas, se eu der mole, vou ter que trocar minha cadeira pra uma tamanho GGX Mega Master Plus. Foi um tal de chocolate quente, chocolate com chantilly, ovo de chocolate, coelho de chocolate...

Um apelo aos engenheiros e arquitetos

    Recado da Glorinha:


      Prezados e queridos engenheiros, por quê? Por que vocês odeiam as rampas?
     Eu queria muitíssimo uma explicação técnica que dissesse o porquê da escolha do degrau ao invés da rampa. Será que é lei? Por favor, algum engenheiro me ajuda? Ah, pode ser arquiteto também.
     Todas as vezes que vamos a um lugar novo (por novo entenda-se uma construção nova ou que passou por uma reforma) eu com meu jeito otimista já penso: “tranquilo, lá terá rampa, lá terá acessibilidade”. S-E-M-P-R-E me engano! Como, em pleno século 21, um profissional faz um projeto sem acessibilidade? Uma rampa gasta mais cimento que um degrau e o orçamento do cliente é justo? Seria isso? Nem estou pedindo elevador; seria advanced demais.
    Será que a solução seria pedir ao MEC que inclua na grade dos cursos uma matéria obrigatória de “projetos com acessibilidade”?
      Enquanto meus queridos não me escutam vou malhando o braço entre um degrau e outro.
     PS.: Estou escrevendo esse texto depois de ultrapassar três enormes degraus do POP (Polo de Pensamento Contemporâneo). Um centro de estudos lindíssimo, com conteúdo de primeira, mas que, em sua reforma, não se preocupou com o acesso. Que pena.
     www.polodepensamento.com.br?
     Engenheiros, arquitetos, please!

terça-feira, 12 de abril de 2011

Só se for dis costa

Todo mês eu faço tratamento numa clínica ali no Humaitá. Todo mês ele está lá, na espreita, só me esperando. Não sei por que, mas o porteiro da São Carlos não vai com a minha cara. É só eu apontar no estacionamento e ele já abre aquele sorrisão. Mete a boina de sargento e vem comandar a manobra. “Minha senhora, segura a porta aí pra mim” – e a minha mãe obedece. “Ô rapazinho, recolhe esse braço que sou eu que tô conduzindo” – e eu obedeço. “Primeiro andar, né?” – e o elevador obedece. Na saída é a mesma coisa. “Pode deixar que eu desço a rampa na boa” – já tentei argumentar. “De jeito nenhum, ficou doido?” – assumindo a direção. “Mas não dá para ser de frente?” – ando meio rebelde. “Dis costa, pra sua própria proteção, dis costa” – fim de papo. Teve uma vez que eu tentei passar na encolha. O cara pulou que nem um gato e parou na frente da porta:
_ Terminou a medicação?
_ É, né... Só ia manobrar aqui ó.
_ Podia ter manobrado ali atrás. – fez cara de Capitão Nascimento e finalizou – Mas não vai de frente não, questão de segurança.
Por algum motivo as pessoas pensam que o modo correto de se conduzir uma cadeira de rodas por um obstáculo é sempre de costas. Depende. Se você está sozinho, conduzido, se é rampa, se é meio fio. Versão resumida: rampa, sempre de frente; degrau subindo, sozinho frente e conduzido ré; descendo é o contrário. Entendeu? Pois é, desse jeito nem eu. Mas, pode crer, com a prática a gente acaba indo no automático. Está todo mundo sempre querendo ajudar. Fica até difícil dizer que não precisa, que eu estou só dando um rolé por aí. Você sai para se exercitar um pouco, dar uma treinada no Aterro e lá vem o tiozinho metendo a mão na cadeira. Outro dia recusei ajuda e o coroa não gostou; fez cara feia e saiu resmungando.
Nem disse que meu amigo porteiro trabalha em dias alternados, disse? O final do tratamento caiu na folga dele. Liberdade! Aproveitei a chance e saí do hospital para dar uma volta pela área. Quem sabe uma olhadinha na Lagoa? Até que veio uma moça perguntando se eu precisava de ajuda e um maluco que nem perguntou nada, já saiu empurrando. O cidadão falava demais (“tô acostumado com isso, meu amigo amputou a perna”) e simplesmente não adiantava tentar explicar que eu não precisava de forcinha nenhuma (“você não amputou a perna não, né?”). Ainda acho que o porteiro deixou o primo dele na esquina, na espreita, só esperando eu passar desacompanhado pela rua. Vai por mim, é combinado.
Foi quando eu olhei direito para a moça, que ainda estava nos acompanhando, e percebi que era aquela atriz, a Isabela Garcia. Então eu matei a charada: atriz da Globo e o sem noção falador, só pode ser pegadinha. Devia ter alguma câmera escondida esperando a hora do Faustão aparecer. Por falar nisso, alguém aí viu se eu apareci no programa domingo?

quinta-feira, 31 de março de 2011

Só atualizando

Preciso fazer algumas observações aqui - até por uma questão de justiça.
Pois bem, então:
as atendentes retornam, sim, os contatos telefônicos;
estão aí Gorete e Giovana que não me deixam mentir;
essas não são nem faladeiras;
graças à dedicação delas vou ter como fazer os cursos que eu queria no Liceu e no POP;
as escadas continuam lá, mas vai dar para ser;
continuo na batalha é com a Moviola e a Estação;
talvez desista da primeira, mas na outra ainda vou tentar um pouco mais;
pintou até outro lance agora, um clube de leitura;
ainda não responderam meu email;
também sem novidades das academias.
Ok, era isso. Só atualizando.



segunda-feira, 28 de março de 2011

Cê deixa o telefone que a gente te retorna, tá?

O primeiro contato, normalmente, é por telefone. A atendente, normalmente, fala pelos cotovelos. Ela te dá o preço do curso, sai dizendo os horários ("o professor é ótimo"), quando a turma começa ("na verdade já começou, mas claro que ainda dá para entrar"). Consigo uma brecha e pergunto:


_ Então, Jéssica, é que eu sou cadeirante e queria saber como é o espaço aí com relação a acessibilidade e tal.
_ ...
_ Jéssica?
_ Só um instantinho que eu vou chamar o Fabiano pra falar com você, tá?


Tem um curso sobre Machado de Assis no Liceu Literário Português de Laranjeiras; um outro sobre cinema e arte no Polo de Pensamento Contemporâneo (POP); oficina de conto na Estação das Letras; de criação literária e História na Moviola. Todos eu estou a fim de fazer. Não deve rolar nenhum. E sabe o motivo? Falta de acesso. Uma escada ou uma porta estreita são suficientes para embarreirar geral. Ainda têm as academias, no caso Upper e Max Forma, onde o problema nem é circular pelo salão. Acontece que nunca ninguém tentou malhar nesses lugares em cima de uma cadeira de rodas - adianto que não tem muita diferença entre quem está de pé e quem está sentado.
Acho que estou chegando a uma nova fase nessa tentativa de reintegração ao mundo. Se a ideia é ir a um restaurante, tem o acessível e o não-acessível. Escolhe o primeiro e bom apetite. Evento com rampa ou evento sem rampa? Evento com rampa. Beleza, mas e quando o negócio é mais específico? O curso que eu quero fazer é aquele. Naquele lugar. O show é daquela banda e não da outra. O seu tio mora naquele prédio, aonde você não consegue entrar sozinho. Visita o cara como? Todas são instituições privadas, não têm obrigação de me receber. Só esperava que tivessem uma postura mais inclusiva. Até porque estamos falando de ambientes onde se discute a sociedade em que vivemos. Estamos falando de professores. De Educação.
A maioria das adaptações necessárias são bem simples, coisa boba. É uma porta que abra para fora, uma rampinha (móvel que seja), um batente mais largo. Pequenas mudanças que fazem toda a diferença. Falta informação. A gente está só começando a pensar uma cidade mais acolhedora. Pedi um laudo lá no SARAH e estou levando para os caras da malhação. De vez em quando mando um email para os coordenadores dos cursos (que ficaram de adequar os respectivos espaços). A tática é insistir, com jeito e educação, mas insistir. Sei que corro o sério risco de parecer chato, mas não vou desistir não. Acho até que amanhã vou tomar um café com a minha amiga Jéssica...

terça-feira, 22 de março de 2011

Falta do que fazer dá nisso

O tempo está meio chuvoso desde o carnaval, não é? Assim, eu acabo ficando mais em casa que de costume. Mais casa, mais internet. Mais internet, mais ideia errada. Estava vendo uns vídeos demonstrando passagem para carro e tal. Os caras transferem na maior facilidade. Aquilo já foi me invocando. Tinha um maluco descendo escada. Outro subindo. Escada rolante, escada parada. Descendo empinando. Enfim, vagabundo faz o diabo em cima de uma cadeira de rodas. Me empolguei e fui para a garagem treinar. Não tinha como dar certo, tinha? Resultado: perna enfaixada e compressa de gelo. Vou botar a leitura em dia e ficar longe do You Tube que é o melhor que eu faço.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Porra, bicho, que merda, hein?

Reunião dos amigos das antigas. No começo fica todo mundo ao seu redor querendo falar ao mesmo tempo. Aos poucos o pessoal vai dispersando. Tem aquele que cola do teu lado e não sai nem por decreto. Tem também quem fique de longe. Lá vem o cara te tratando cheio de dedo. Fala baixinho, como se fosse segredo. Há os que ficam perguntando pela lesão e os que fingem que nada aconteceu. O tempo vai passando e a rapaziada começa a se soltar. E o que fica falando, falando, que nem uma metralhadora? Alguns adotam um tom grave para conversar contigo, entende? Parece que estão apresentando o Jornal Nacional. Até que vem um, senta do teu lado, dá um gole na cerveja e manda:
_ Porra, bicho, que merda, hein?
_ É. Que merda...
Vai embora e chega o outro:
_ Que merda, hein?
_ Ô...
Um terceiro aparece, senta e fica mudo. Aí, sou eu que digo:
_ Que merda, hein?
_ Pode crer... Que merda!
Cada um é de um jeito. Cada um reage de um jeito. Os contadores de causos ficam lembrando histórias do passado. Com detalhes que nunca existiram. A cada encontro elas ficam melhores.
_ Mermão, tava sem coragem de te ver...
_ Porra, mas por que que foi acontecer isso logo contigo? Tanto muquirana por aí...
Queria que eles soubessem que eu estou bem. Bem de verdade. Acho que no início é assim mesmo, com o tempo acostuma. Com o tempo tudo se ajeita.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Papo de botequim

Estava no boteco aqui do lado de casa e eis que ele me abordou. Esticou a mão para cumprimentar e perguntou se eu estava bem. Respondi que sim e devolvi a pergunta:
_ E contigo, tudo certo?
_ Mais ou menos, né... Acabei de enterrar meu pai. Ele tava no ônibus e infartou...
_ Bicho, não sei nem o que te dizer... Meus sentimentos...
Nunca tinha falado com ele. Sei que mora no meu prédio, mas nunca tinha falado com ele. Até imagino como estava se sentindo. Perdi meu pai quando tinha mais ou menos sua idade. O cara estava sozinho. Parece que a mãe já estava descendo. Devia estar querendo conversar... Não sei que link ele fez para me escolher em meio a tanta gente. Acho que rola uma afinidade entre quem passa por dificuldades. A gente se torna meio cúmplice na hora do aperto. É como se me dissesse: "Eu tô te vendo aí nessa cadeira. Sei que tá sendo difícil. Mas olha, eu tô sofrendo também". Pensava nisso enquanto ele falava. Não disse seu nome, nem perguntou o meu. Foi ideia do pai que chegasse do enterro e parasse num bar para tomar uma cerveja com os amigos. Parece que virou meu amigo agora. O chope de hoje foi um pouco em homenagem ao pai do garoto. Portanto, um brinde a eles!

quinta-feira, 17 de março de 2011

Parceiros de caminhada

O lugar é bonito, design arrojado. Estrutura nota dez. Muito limpo também. Acessível em cada detalhe. Os funcionários são educados a começar pelo(a) telefonista que te liga para marcar o atendimento - sim, são eles que te ligam. Lá o horário é cumprido (se a consulta está marcada para as dez, ela começa às dez). Equipamentos de ponta estão à disposição. Os profissionais são bem formados e informados. Acredita que eles estão abertos ao diálogo? O programa que eles desenvolveram me parece bastante adequado, para mim faz todo sentido. Eles fazem intercâmbio com colegas de outras unidades, em outras cidades, outros países. O ambiente acolhedor propicia interação entre os pacientes. Além de ser tudo absolutamente gratuito, eles ainda doam equipamento. Não. Esse lugar não fica na Suíça. Estou falando da Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação.

quarta-feira, 16 de março de 2011

O negócio é levar vantagem em tudo, certo?

O bom blog Ser Lesado (serlesado.com.br), do Leandro Portella, postou hoje a seguinte matéria: "Motoristas estacionam carros em vagas de deficientes sem medo de serem multados". Me recusava a acreditar que acontecesse esse tipo de coisa, mas, infelizmente, ocorre sim. Já presenciei algumas vezes. A pior delas foi no estacionamento do Fashion Mall. Imagina o shopping lotado. A gente rodava, rodava e não achava nem uma vaguinha. Já estávamos pensando em largar o carro na rua mesmo quando vi o malandro embicando na vaga para cadeirantes. Pedi para Glorinha dar uma parada e fiquei só olhando. Me sai do carro um camarada, esposa e uma menina de uns dez anos. Abordei o cara e ele disse que também era deficiente e tal. Foi embora e só aí se lembrou de começar a mancar, é mole? Caso típico da Lei de Gérson. Tudo bem, se é esse o exemplo que o cretino quer dar para a filha... Guanabara, Etna, Extra, Feira de São Cristóvão. Presenciamos exemplos de desrespeito à lei mesmo quando há vagas de sobra. O fato se dá simplesmente para ficar mais próximo da entrada. A cartilha do IBDD orienta que chamemos, nesses casos, a polícia ou a guarda municipal. Afinal, tem doido por aí que ainda agride deficiente que reclama seus direitos.
Em tempo: "de acordo com o artigo 181 do Código de Trânsito (CTB), estacionar um veículo em desacordo com a sinalização, como placas de estacionamento, é infração leve, sujeita à perda de três pontos na carteira, aplicação de multa e remoção do veículo".

Nilza Rezende: E a gente não pensa nisso, absurdamente

Nilza Rezende: E a gente não pensa nisso, absurdamente: "Dos comentários ao post de ontem: Carlos Eduardo disse... Professora Nilza, como vai? Tentei me matricular na oficina do conto que começa..."

terça-feira, 15 de março de 2011

Cadeirante ecológico

Dia Mundial dos Direitos do Consumidor é para parar e pensar se estão te tratando bem por aí. Estava folheando a Veja Rio dessa semana e deparei com a seguinte chamada: "Restaurantes investem em reciclagem, economia de energia e acesso para deficientes, entre outras medidas consideradas ecologicamente corretas". Espera aí, acesso para deficiente é questão de ecologia? Ganhou minha atenção, agora eu vou ler essa matéria. O título: "Quanto custa ser do bem - Restaurantes investem em medidas verdes e ecologicamente corretas". Já sei, já sei, vocês vão dizer que eu pego no pé da Veja Rio, não é? Mas olha só, acompanha comigo. Os caras dizem que a Casa de Cultura Laura Alvim é acessível (favor conferir o post "Vá ao teatro (e me chame)"). Outra casa que, segundo a revista, possibilita acesso para deficientes físicos é a Chez Younes. A gente já foi lá. A comida é ótima, o preço também (pede o rodízio), os funcionários são atenciosos, só não tem acessibilidade - tremendo degrauzão na entrada, sem banheiro e mesas juntinhas demais umas das outras. Eu não sei quais são os critérios que esse pessoal usa para estampar em suas páginas aquela cadeirinha como símbolo. Só acho que acessibilidade não é uma questão de ser do bem, e sim de cidadania. O artigo na verdade se resume a uma arte esquematizando o custo de adequar um estabelecimento com medidas desejáveis, politicamente corretas. Se você está pensando em abrir um restaurante, pare de ler esse post agora mesmo.
Se continuou por aqui, imagino que não pretende virar empresário, é muito rico ou muito curioso. Pois bem então: um elevador para cadeirantes sai por 25.000 reais (mensais), impressão de cardápio em braile, 4.000 reais cada e um banheiro adaptado custa 6.000 reais. Agora me diz: essa revista é ou não é meio sem noção?

Troféu sem noção do ano

Com a palavra, Glorinha:


Ficou sob minha responsabilidade escrever este post sobre o “TROFÉU SEM NOÇÃO DO ANO”, eu diria até DO SÉCULO. Mas como fazer isso sem dar uma contextualizada? Para tal, ele terá um tom dramático. Inevitável, pois só descrevendo o que estava rolando naquele mês é que as pessoas conseguirão entender o quanto foi sem noção aquele “Vocês terão que passar a noite aqui e ir embora amanhã, Ok?" Imagino que vocês estejam pensando que perdemos um voo e teríamos que passar mais uma noite em Paris ou em Noronha. Mas não, nada disso.
Era sábado, final da tarde. Mais um finde no hospital. Numa internação que duraria apenas 10 dias, no máximo, e já durava um mês. Para mim, era muito mais que isso. Já havia perdido toda a minha força, minha energia, minha capacidade de resiliência. Minha fantasia de Mulher Maravilha estava gasta, surrada... Durante a semana, eram horas ao telefone inventando assuntos divertidos. Era desligar o telefone e dormir chorando. De 6ª a 2ª feira pela manhã, ficava eu inventando assunto, engolindo as lágrimas que insistiam em descer, contrabandeando alimentos do mercadinho, dividindo os problemas do meu trabalho.
Era sábado. Sábado num hospital não cinco estrelas. Sendo atendido por enfermeiras e técnicas de enfermagem (nem vou falar desta raça, digamos assim, porque isso merece um post exclusivo, ou até mesmo um blog exclusivo de reclamações. Ôôôô raça!) não muito, podemos dizer, nota dez em sua profissão. Era longe, do outro lado da poça. Longe de tudo e de todos. Longe de um lugar bacana para comer e assim arejar a mente, pelo menos nas refeições. Para diversão, só a cantina com cheiro horrível e o mercadinho próximo com produtos limitados. A TV com “chiados” e imagem ruim. TV a cabo? Sem chance.
Era sábado. Sábado, só nós dois. Só nós dois num hospital. Além de longe, decidimos que visitas não eram bem vindas pelo tipo de tratamento feito. Para evitar infecções etc.
Era sábado. Era sábado e já  havíamos passado por antibióticos prescritos errados, por lesão uretral causada por enfermeira que fez  merda (desculpem o termo, mas não há outra forma de explicar rapidamente. Isso também merece um post exclusivo), infecção por acesso venoso não limpo direito, por curativo não feito.
Era sábado. Mais um dia que as refeições viriam e seriam horríveis. O contrabando trazido do mercadinho às vezes dava conta. Era sábado. Era sábado e aniversário da minha mãe. Era o primeiro aniversário da minha mãe que não estava com a família comemorando, ela entendera. Mas era sábado. Sábado com três vezes mais de tempo previsto de internação.
Era sábado. Era sábado quando ficamos o dia inteiro ensaiando um jeito de sairmos dali. Pediríamos ao doutor que nos deixasse curar a infecção em casa e depois voltaríamos para retomar o tratamento. Ensaiamos o dia inteiro como seria o approach. Decidido. Falaríamos assim que ele adentrasse o quarto. Eu faria aquela cara de esposa louca e ele, o doente desorientado. Decidido e ensaiado.
Era sábado. O médico chega e, antes mesmo de começarmos nosso número, começa a conversar, pede desculpa pelo antibiótico receitado errado e tal. Enfim, nos dá alta. Como não posso perder meu tom dramático (o Carlos diz que sou dramática e emocional) começo a chorar de emoção... Confirmo que o poder da mente existe mesmo. Desejamos tanto que aconteceu. Até aí tudo bem. Onde então está o troféu sem noção? Era troca de turno das enfermeiras e técnicas. Você sabe o que é uma troca de turno desta raça? É uma pressa para ir embora... Por isso se injeta vaselina, troca-se remédio, corta-se dedo de criança e por aí vai... Nesta época, ainda precisávamos de ajuda, não sabíamos fazer transferência (para os que não entendem este termo, muito comum entre os “lesionados medulares”, é pular da cama-cadeira de rodas, cadeira de rodas-carro etc), então precisaríamos de ajuda até o carro. Em casa daríamos um jeito... Eis que surge a pérola da moça que insistia em ficar olhando o relógio:
- Essa hora o maqueiro já foi, então vocês terão que passar a noite aqui e ir embora amanhã, Ok?
Sorrio e respondo:
- Você não está entendendo. O Carlos sai daqui hoje nem que o doutor tenha que carregar ele no colo ou eu tenha que fazê-lo.
Neste dia o meu aprendizado profissional, que me treinou na resolução de problemas, me ajudou. Chegamos em casa sãos e salvos e um primo querido nos aguardava para a segunda etapa (carro-cadeira, cadeira-cama). Ligação para sogra e mãe - o melhor presente de aniversário recebido por ela.
Era sábado. Enfim sós. Enfim sós e em casa.


Gloria

segunda-feira, 14 de março de 2011

Vá ao teatro (e me chame)

Fim de ano, campanha Teatro para Todos rolando. A gente entrou numa de assistir à peça Mente Mentira na Casa de Cultura Laura Alvim. Era uma das primeiras vezes que nos aventurávamos a sair sozinhos, acho até que era a primeira. Saímos cedo de casa e fomos para o metrô, estação Flamengo. O elevador, que acabara de ser inaugurado depois de meses em obra, já estava quebrado (fiquei sabendo depois que o problema era que ninguém sabia com quem estava a chave que abria o negócio). Me desceram para a plataforma num aparelho que é meio manual, meio mecânico; meio esteira, meio rodinhas. Tranquilo, já tinha usado outras vezes. A Gloria é que ficou meio assustada com o sistema. A Laura Alvim está indicada na Veja Rio como local acessível. Quem disse isso nunca andou numa cadeira de rodas. O lugar pode ser qualquer coisa, menos acessível. Piso, rampas, banheiro, nada ali facilita as coisas para um cadeirante. Muito pelo contrário. Com a educação de um javali do mato, o cara do guichê me informa que não tinha essa de lugar preferencial não. "Parceiro, para resolver seu caso só a administradora. Próximooo..." Cabe aqui um esclarecimento: eu não estava tentando nenhuma vantagem especial. Só queria evitar o constrangimento de ficar atrapalhando a visão de alguém. Isso já aconteceu e é muito chato. A tal administradora chegou. E bem a tempo, pois o pessoal na fila já estava me olhando de cara feia (tinha uma mulher lá que desconfio que tinha a cara feia assim mesmo, sei lá). Tudo mais ou menos, até chegar ao elevador. Quem disse que a cadeira entrava? Quase tiveram que quebrar um pedaço da porta, mas deu para subir. A cereja do bolo foram dois degraus que ficam bem na entrada da sala. Mesmo com ajuda fica complicado. Assisti ao espetáculo junto à porta, animado pelo entra-e-sai da galera. Esperando por dois funcionários que pudessem ajudar na saída, Glorinha aproveitou para emitir sua opinião sobre a Casa. Falou tanto que a tal administradora prometeu ligar convidando para uma nova peça que iria estreiar em janeiro, quando tudo já estaria adequado a receber todo tipo de público. Acho que o título da peça, Mente Mentira, foi ela que deu. Só para completar, o elevador da estação Ipanema do metrô não estava funcionando. Os funcionários deram uma de João Sem Braço e saíram de fininho porque tinham acabado de auxiliar outra cadeirante a descer pela escada rolante e eles certamente não tinham a menor intenção de se esforçar mais que o necessário. Demos o nosso jeito lá e ficou tudo certo. A aventura nos ensinou uma lição: não vale a pena se estressar por bobagem. O lance é enxergar o lado divertido de tudo e aguardar o próximo evento.

domingo, 13 de março de 2011

Salve, Jorge!

A Gloria estava ao telefone pegando informações sobre um resort para a gente de repente ir qualquer dia desses. Termina a ligação e fica rindo sozinha. Parece que a coisa foi assim:


_ Mas então vocês têm acessibilidade para cadeirantes...
_ Teeemos. Total acessibilidade.
_ Ah, tá. Ele pode circular sozinho pelas principais dependências do hotel, né?
_ Não, não, sozinho não.


A gente só fez uma viagem por enquanto. Hotel Florença, em Conservatória. Dica de uma amiga (cujo pai estava utilizando uma cadeira de rodas à época) que foi lá e gostou. O objetivo era passar o fim de semana do meu aniversário só nós dois. Ligamos com a devida antecedência, pesquisa na internet, beleza, certinho. Tentamos nos montar de todas as formas prevenindo qualquer contratempo nessa viagem-teste. Resultado: ficamos eu, ela e o Jorge. Ninguém esperava que um hotel fazenda oferecesse arvorismo adaptado ou tivesse elevador para subir em charrete. O basicão era quarto, banheiro e algumas áreas comuns. Acontece que eu só tinha autonomia para ir do quarto até a recepção. Ou seja: pagar a conta eu podia, almoçar não. O mesmo esquema do restaurante valia para as piscinas, salão de jogos, igreja, casa grande, áreas de convivência. Para frequentar qualquer desses ambientes, só com ajuda, pois o chão é todo irregular, de pedra. E é aí que entra o Jorge. Funcionário do hotel, bastava a gente sair do quarto para o cara aparecer. Vamos para a piscina? Está lá o Jorge oferecendo uma forcinha. Salão de jogos? Jorge saltando de trás de uma moita. Ficou na nossa cola o tempo todo. A fazenda serviu de locação para algumas novelas, mas daí a ter escravo particular vai uma distância. Só faltou a musiquinha de fundo: lerê, lerê, lerê, lerê, lerê, vida de nêgo é difícil... Um fazendão do século 19 deve mesmo preservar o aspecto da época e tal. Uma boa solução para o problema é a medida que adota o Forte de Copacabana, que mantém a forma original, mas cria um caminho alternativo paralelo com piso regular. Uma espécie de tapete de concreto. O Vassouras Eco Resort é novinho em folha (só seis meses de funcionamento) dava para ter feito um projeto inclusivo. Acho bem mais inteligente. O balanço da viagem acabou sendo super positivo. Deu para curtir, descansar. Na despedida, quem parecia feliz mesmo era o Jorge. Vai ficar um bom tempo sem poder ouvir falar em cadeira de rodas.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Jogo do contente

Pode chamar de maluco, mas dá para enxergar lado positivo nisso tudo. Da série "As vantagens de ter ficado doente":
hoje valorizo muito mais minha família;
descobri que tenho mais (e melhores) amigos do que imaginava;
Gloria diz que estou mais divertido (desconfio que eu era um tanto chato);
não esquento a cabeça por qualquer bobagem;
tenho mais disposição para tudo, perdia fins de semana inteiros só praticando nadismo (preguiçoso mesmo);
estou curtindo esse lance de cuidar da saúde (alimentação, exercícios, essas coisas);
não tenho bebido nem fumado;
agora aproveito mais o dia (já estive mais para morcego da madrugada);
por estranho que pareça, meu tempo rende mais, estou mais produtivo;
menos estabanado, mais cuidadoso (quem faz com pressa, periga ter que fazer tudo de novo);
agora me concentro em fazer as coisas que realmente gosto de fazer (precisei parar de andar para começar a me mexer);
além disso dá para pegar ônibus de graça, tem desconto em viagem de avião, nunca mais vou pagar DUDA na vida, o estacionamento preferencial é (quase) garantido, isenção de IPI, ICMS, IOF, IPVA, também de IR e IPTU, reserva de vagas em concursos públicos, gratuidade em eventos esportivos, meia entrada em estabelecimentos culturais e/ou entretenimento em geral. Sei não, se for pesar direitinho...

quarta-feira, 2 de março de 2011

Red Bull te dá aasaaaas

A cena é sempre a mesma. A pessoa fica te olhando por uns instantes, coça o queixo ou a cabeça e dispara:


_ Mas você não mexe nada?
_ Não, meu amigo, nada.
_ Nada, né...
_ Nada.
_ O senhor não sobe escadas?
_ Não, não subo.
_ Vai precisar de algum auxílio, alguma ajuda...
_ ...


O cadeirante está sempre sujeito ao improviso. A gente é minoria, eu sei, por isso quase nunca os locais ou as pessoas estão preparados para nos receber. Acaba que no final rola um mutirão e te carregam meio que no colo mesmo. Tudo mais ou menos não fossem os comentários que saem antes da solução do problema. Bicho, é cada pergunta... Sabe quando você está só pensando e quando vê já falou em voz alta o que não devia? A impressão que eu tenho é essa. É isso ou o cara está de sacanagem comigo. Se eu conseguisse andar só aquele espacinho, subir só aquele degrauzinho, não estaria de cadeira de rodas, pescou? Vou descolar uma cadeira com rodão e motor envenenado ou começar a beber aquele energético da televisão. Quem sabe assim eu não supero os obstáculos e paro de ouvir abobrinha?

terça-feira, 1 de março de 2011

A fisioterapeuta do cara da novela

Eu jurava que quando alguém fica paralítico o problema era só da cintura para baixo. As pernas não mexem, mas vida que segue. Pois a coisa não é bem assim. Junto com a paralisia vem uma penca de coisa a reboque. Faz parte da bronca. Tem um lance que chamam de controle (equilíbrio) de tronco, que você simplesmente perde. Depois melhora, mas perde. Outra coisa muito estranha é que você não deixa propriamente de sentir os membros. O sistema nervoso fica maluco e manda impulso o tempo todo, só que tudo descoordenado. Aí é um tal de choque, formigamento, espasmo, trimilique... Até acostumar é meio chato. E para usar o banheiro? Não vou entrar no detalhe, só digo que o negócio é trabalhoso. Muito trabalhoso. E envolve desde uma alimentação e hidratação adequadas até sondas e massagens abdominais. Requer muita informação, disciplina, tempo e esforço equacionar a coisa toda. Mesmo assim, deu mole... Sem contar que a gente passa a conviver com um monte de fantasmas: infecção urinária, úlcera de pressão (escara), novas lesões. Eu mesmo tenho um sonho recorrente onde meu avião cai no mar e sobrevivo à queda, mas vou morrer afogado porque não sei bater perninha. É mole? Cada deficiência tem sua especificidade. Cada um sente (ou não sente) de um jeito. Então, só para retomar o assunto das rampas, acho que o que falta é informação. Eu mesmo, antes da lesão, não fazia ideia da gama de questões envolvidas no tema. As coisas estão melhorando a cada dia, e não o contrário. Tem muita gente boa por aí fazendo e divulgando coisas incríveis e acho que o caminho é esse: quanto mais informação, mais as coisas vão se aperfeiçoando. Enquanto isso eu vou procurar a fisioterapeuta do cara da novela para ver se ela me ensina a nadar. Estou pensando em viajar no carnaval e vai que...

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Para não dizer que não falei de rampas

Tem muita rampa por aí que é íngreme demais. Outras são feitas com material inadequado. Algumas são inacreditavelmente compridas. Já topei com várias delas que são tudo isso junto. Agora, com degrau é sacanagem. Imagina a situação: o cadeirante faz um esforço do cão para subir uma rampa e quando termina dá de cara com um degrau. Aí faz o quê? Trava a cadeira e decide se vai descer ou contar com a boa vontade de algum passante. Queria entender o que passa pela cabeça de quem constrói um troço desses. Deve achar que se o cara está numa cadeira de rodas, necessariamente tem que ter alguém tocando a cadeira para ele. O conceito de acessibilidade está ligado ao de inclusão. O cadeirante deveria poder circular sem precisar de auxílio. Você pode até dizer que sempre vai ter alguém para ajudar, para dar uma força. Só que o meu direito não passa pelo favor dos outros. Tem também que nem é seguro depender de terceiros. Às vezes quem ajuda acha que vai aguentar o peso, que sabe como ajudar... As rampas auxiliam não só os cadeirantes, mas os idosos, as gestantes, as mamães, papais e babás com seus carrinhos de bebê, os obesos, o craque da pelada que torceu o tornozelo, enfim, todo mundo, mais cedo ou mais tarde, vai se beneficiar com uma sociedade mais inclusiva. A rua é para todos.
Em tempo: as rampas devem ter superfície antiderrapante e a relação indicada é para cada 2,5 cm de altura, 30 cm de comprimento.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Cara de sorte

Acabei me acostumando com a situação, a cada vez que conto os acontecimentos recentes da minha vida: no espaço de uma semana eu perdi os movimentos e a sensibilidade nos membros inferiores, do tórax para baixo. Assim mesmo, de repente. Aos 37 anos, sem nunca ter tido qualquer problema de saúde, me vi paraplégico. E sem diagnóstico conclusivo. O interlocutor me encara com uma expressão que é misto de espanto e cumplicidade. Assim que dá, mudo de assunto e tudo certo. Não vou negar que tenha passado pela cabeça aquela história de "por que logo eu?", "que foi que eu fiz para merecer isso?". Confesso que cheguei a sentir pena desse cara tão azarado. Acontece que outro dia a tal expressão veio de uma moça tetraplégica, por sofrer um acidente de carro, que capotou quando ela e o namorado estavam a poucos metros de chegar em casa. Na esquina de casa. Só aí a ficha caiu. Eu sou mesmo é um iluminado. Agradeço todos os dias pela sorte que tenho na vida. Sorte pela esposa maravilhosa que tenho. Pela família, pelos amigos maravilhosos que tenho. Sou um privilegiado por ter um emprego, plano de saúde. Por ter sido bem orientado desde o início. Por morar num bairro onde posso me deslocar, onde a acessibilidade é bem razoável. Achava meu caso único, o mais incrível da história dos casos incríveis. Eu só parei de andar. Sem a dor envolvida numa batida de carro, um mergulho mal sucedido ou um tiro na coluna. Sem o trauma que deve vir junto. Tenho ouvido muitas histórias ultimamente, histórias de vida, de superação. E, até para minha surpresa, nunca com o peso da revolta. Sempre com um sorriso no olhar. Não vejo referência a tristeza. E é a essas pessoas que agradeço, de coração. A cada uma delas.